Durante o Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, dois profissionais foram convidados para tecer comentários críticos sobre os espetáculos apresentados na programação do evento: Luciana Romagnolli e Valmir Santos.
Luciana Romagnolli é jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com especialização em Literatura Dramática e Teatro pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), mestre em teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuou como jornalista de teatro na Gazeta do Povo (2007-2010), em Curitiba, e no jornal O Tempo (2011-2012), em Belo Horizonte. É colaboradora do site Questão de Crítica e mantém o blog Horizonte da Cena, juntamente com a crítica e pesquisadora Soraya Belusi.
Valmir Santos é jornalista que se dedica à cobertura de teatro desde 1992. Mestre em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), exerceu as funções de repórter e redator nos jornais Folha de S.Paulo (1998-2008) e O Diário de Mogi (1989-1996), Mogi das Cruzes, São Paulo. Colaborou com reportagens e críticas no jornal Valor Econômico e na revista Bravo!. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena, desde maio de 2010.
Abaixo você pode ler os textos produzidos por eles sobre nosso espetáculo "Esse Corpo Meu?"
Valmir Santos é jornalista que se dedica à cobertura de teatro desde 1992. Mestre em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), exerceu as funções de repórter e redator nos jornais Folha de S.Paulo (1998-2008) e O Diário de Mogi (1989-1996), Mogi das Cruzes, São Paulo. Colaborou com reportagens e críticas no jornal Valor Econômico e na revista Bravo!. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena, desde maio de 2010.
Abaixo você pode ler os textos produzidos por eles sobre nosso espetáculo "Esse Corpo Meu?"
Foto SECOM Itajaí |
Uma poética da libertação dos corpos
por Luciana Romagnolli
É próprio da performance como campo de conhecimento superar o logocentrismo, que concentra o saber humano somente na razão e nos discursos, e o pensamento binário, que constitui pares dicotômicos hierárquicos e excludentes, como sujeito/objeto, mente/corpo, razão/emoção, homem/mulher, masculino/feminino. Com isso, não somente valoriza os saberes do corpo, mas coloca em xeque questões de gênero e identidade.
A performatividade é um conceito sobre o qual muitos já escreveram. Dentre elas, Judith Butler, no viés do feminismo e da teoria queer, pensando o processo de constituição do gênero por meio da internalização das normas do que é ser homem ou ser mulher, manifestas nos corpos. E Josette Féral e Erika Fischer-Lichte, ao apresentarem teatro performativo como aquele no qual a presença sobrepõe a representação.
“Esse Corpo Meu?”, criação da Téspis Cia de Teatro, de Itajaí, com a Periplo Compañia Teatral, de Buenos Aires, trafega por esses dois territórios, da performatividade de gênero e teatral, com admirável habilidade em colapsar a oposição entre forma e conteúdo. Max Reinert e Denise da Luz corporificam os estereótipos do masculino e do feminino e os lançam num jogo de intercâmbios e mutações, que desestabilizam o binarismo dessa oposição, mostrando possibilidades transgressoras e transitórias.
Trans. Eis o prefixo-chave, já transformado em conceito. Remete ao universo da diversidade sexual, nas figuras de travestis e transexuais, não como novas categorias estanques, mas, justamente, como a liberdade de transcender categorizações, transitar “entre”, “além” dos polos dos binômios. Nesse sentido, além de um movimento no campo dos direitos humanos fundamental em nossos tempos, o “trans” transpõe qualquer gueto para afirmar a liberdade do ser, a possibilidade de desvencilhar-se dos restritos padrões normativos da constituição da identidade. Assim, liberta cada indivíduo de experimentar sexo e gênero como aprisionamento.
Em Belo Horizonte, “Esse Corpo Meu?” encontra um espelho: o espetáculo “Trans”, do coletivo This is noT, realizada pelos performers Guilherme Morais e Ana Luísa Santos. As coincidências são várias, desde o diálogo com a argentina, a partir das pesquisas sobre identidade de gênero da ONG Futuro Transgenérico e da artista trans Susy Shock, até questões formais mais específicas, como as imagens do duplo, configurada pelos atuantes, e a simultânea frente de batalha nos campos da linguagem, da imagem e do corpo.
Ao traçar outras conexões entre o espetáculo da Téspis se a cena teatral brasileira mais contemporânea, percebe-se a força estética e ética de um conjunto de trabalhos. Ainda na capital mineira, uma das criações mais desafiadoras do ano passado foi a cena “Não conte comigo para proliferar mentiras”, dirigida por Alexandre de Sena, somando perspectivas críticas de cor, classe e gênero; e “Rosa Choque”, sob a direção de Cida Falabella, e “Calor na Bacurinha”, quando dirigida por Marina Viana, embora não abracem frontalmente a questão trans, desconstroem estereótipos da performance de gênero e do ser mulher. Já em Curitiba, há os trabalhos da Selvática Ações Artísticas, dentre os quais “As Tetas de Tirésias”, mito transgênero primordial, lembrado também no espetáculo de Itajaí.
O que faz desses trabalhos tão desafiantes para o espectador – falando especificamente de “Esse Corpo Meu?” também –, é a construção dramatúrgica, energética e espetacular não de uma alegação, certeza ou defesa de ponto, cristalizadores das ideias e das ações, mas de um questionamento. Uma crise. Uma indagação. Para isso, é determinante a não coincidência entre a cena visual e a cena sonora – entre os movimentos dos corpos presentes e as vozes desencarnadas em off. O tratamento poético dado às palavras mas também sua forma de emissão, em eco, entre ruídos sonoros que remetem ao futurismo oitentista de ciborgues transumanos. O caráter simbólico dos movimentos dos atuantes, construídos numa operação de estilização que transforma os gestos mais cotidianos, clichês de gênero, em estranhamentos.
A expressividade corporal de Max e Denise delineia-se plástica e discursivamente como produtora de imagens impregnadas de simbolismo. Vestir uma roupa corresponde a vestir um papel social, ou igualmente desvesti-los, e o preparo corporal de ambos permite o livre trânsito pela gramática do feminino e do masculino. Quando finalmente as gestualidades se confundem, inclassificáveis, os braços enfim se soltam, livres dos gestos pré-programados da moça e do macho, e dançam explorando o espaço.
A cena da construção da mulher perfeita é exemplar: impressiona o quanto se reconhece do ideal feminino socialmente aceitável no frankstein-mudo. Este e outros momentos ainda fazem pensar sobre a complexa relação entre a construção do feminino pelo corpo-mulher e pelo corpo-homem. A diva loira como algo do qual a mulher precisa se libertar, mas que o corpo-homem, se não cisgênero nem heteronormativo, almeja como libertação.
Corpos e sons geram uma atmosfera sinestésica, uma sensibilidade particular, de uma delicadeza estranha, leve acidez afetiva a corroer pouco a pouco as certezas do espectador. O que se faz no palco, segundo o próprio texto, é a paródia da paródia da paródia. O humano que imita o humano que imita o humano que imita. As figuras em cena insistem em risos satíricos – riem de si ou de nós? Recobrem com uma camada de cinismo tudo o que mostram.
Na apresentação realizada no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a presença de uma turma de estudantes na plateia extravasou o difícil convívio desse tipo de proposição cênica com um público indisposto ao confronto estético, manifesto no fiufiu sexista, na surdez e na cegueira eletivas para o que não se quer enfrentar – atitudes comuns a outros estratos da sociedade menos dispostos a se autodenunciarem em gritos adolescentes.
Diante de cenas sugestivas como a bolinha que repetidamente rola do homem em direção ao meio das pernas da mulher e o brincar de carrinho e de boneca, entrevê-se a puerilidade da heteronormatividade castradora. Mas “Esse Corpo Meu?” não trata o espectador como criança. O cinismo é um modo de olhar para esse indivíduo infantilizado socialmente pela simplificação normativa, padronizada e binária do mundo como o adulto que ele é.
O espectador olha para a cena ou a cena olha para o espectador?
Foto SECOM Itajaí |
Sampleando desejos
por Valmir Santos
A neutralização do corpo é uma das constantes no teatro pós-dramático. Ele não modula esforço por linhas de emoção ou de identificação. Os atores Denise da Luz e Max Reinert seguem essa percepção à risca em Esse Corpo Meu? (2014), da Téspis Cia. de Teatro, de Itajaí. Adicionam fortes ingredientes da ação performativa para desconstruir a ilusão cênica e criticar a fixação biológica de gênero, como se as genitálias presumissem o desejo.
Seus corpos-manequins são suportes para samplear o gesto, a vestimenta, a atitude, o estereótipo. Desfilam no palco desvios e deslizamentos do masculino e do feminino com variantes para as transgeneridades.
Na criação colaborativa com a argentina Periplo Compañía Teatral – a direção é de Diego Cazabat –, a partitura física estiliza a glamorização da vida e provoca estranhamentos nos papeis sociais do homem e da mulher, ruídos representacionais a ver com a pele que cada um habita.
O texto-pensamento flutua em voz off sobre a dança dos corpos de Reinert e Denise, que transitam diálogos não-verbais e olhares que dizem muito. A fala gravada funde-se à paisagem sonora desenhada por Hedra Rockenbach, instigando uma dramaturgia que abre paralelos ou surte efeito direto.
A dupla atira-se de peito aberto. Seus corpos-narradores frequentemente vêm do fundo para a boca de cena. A frontalidade desenha como que um corredor-passarela em direção ao público. Também ao fundo, dois painéis lado a lado, de pé-direito alto, são os respectivos guarda-roupas. Atrás de cada um deles Denise e Reinert providenciam as mutações.
A pesquisa da coprodução encontrou níveis sofisticados de associação trabalhando com um material difícil de ser processado. Samplear significa montar. Não bastasse o campo de suas culturas em cruze, as duas companhias se permitiram contextualizações e relativizações históricas, econômicas e antropológicas sutilmente sinalizadas em objetos, adereços e figurinos, ou assumidamente viscerais nos corpos convulsos ou estatelados.
Afinal, estamos diante de diferentes níveis de violência na sociedade, como aquela exercida particularmente sobre o corpo da mulher, do cala boca machista ao fetichismo publicitário e cosmético.
As miniaturas de um carro e de uma boneca mimetizam infâncias emolduradas pelo tempo. Em alguma medida elas eram descondicionadas pela ternura acenada no desfecho. São imagens políticas que ampliam horizontes e refutam as agendas conservadoras sobre as normatizações da sexualidade, desculpa para o preconceito.
Entre chegar a esse raciocínio e transpô-lo à cena a Téspis e a Periplo, companheiras de intercâmbio desde 2007, conseguiram friccionar heterogeneidades também artísticas. A terceira via é o que Esse Corpo Meu? mostra equilibrando-se sobre o fio da navalha. Risco superado até durante a apresentação para uma plateia lotada, sobretudo, por estudantes do ensino médio. Apesar de um ou outro espectador incauto, o público em geral fruiu uma obra artística inquietante, além do que é um alento notar a floração adolescente tolerando as diferenças.