terça-feira, 18 de agosto de 2015

Críticas sobre o espetáculo "Esse Corpo Meu?" no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha

Durante o Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, dois profissionais foram convidados para tecer comentários críticos sobre os espetáculos apresentados na programação do evento: Luciana Romagnolli e Valmir Santos.

Luciana Romagnolli é jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com especialização em Literatura Dramática e Teatro pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), mestre em teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuou como jornalista de teatro na Gazeta do Povo (2007-2010), em Curitiba, e no jornal O Tempo (2011-2012), em Belo Horizonte. É colaboradora do site Questão de Crítica e mantém o blog Horizonte da Cena, juntamente com a crítica e pesquisadora Soraya Belusi.

Valmir Santos é jornalista que se dedica à cobertura de teatro desde 1992. Mestre em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), exerceu as funções de repórter e redator nos jornais Folha de S.Paulo (1998-2008) e O Diário de Mogi (1989-1996), Mogi das Cruzes, São Paulo. Colaborou com reportagens e críticas no jornal Valor Econômico e na revista Bravo!. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena, desde maio de 2010.

Abaixo você pode ler os textos produzidos por eles sobre nosso espetáculo "Esse Corpo Meu?"

Foto SECOM Itajaí
Uma poética da libertação dos corpos
por Luciana Romagnolli
É próprio da performance como campo de conhecimento superar o logocentrismo, que concentra o saber humano somente na razão e nos discursos, e o pensamento binário, que constitui pares dicotômicos hierárquicos e excludentes, como sujeito/objeto, mente/corpo, razão/emoção, homem/mulher, masculino/feminino. Com isso, não somente valoriza os saberes do corpo, mas coloca em xeque questões de gênero e identidade.
A performatividade é um conceito sobre o qual muitos já escreveram. Dentre elas, Judith Butler, no viés do feminismo e da teoria queer, pensando o processo de constituição do gênero por meio da internalização das normas do que é ser homem ou ser mulher, manifestas nos corpos. E Josette Féral e Erika Fischer-Lichte, ao apresentarem teatro performativo como aquele no qual a presença sobrepõe a representação.
Esse Corpo Meu?”, criação da Téspis Cia de Teatro, de Itajaí, com a Periplo Compañia Teatral, de Buenos Aires, trafega por esses dois territórios, da performatividade de gênero e teatral, com admirável habilidade em colapsar a oposição entre forma e conteúdo. Max Reinert e Denise da Luz corporificam os estereótipos do masculino e do feminino e os lançam num jogo de intercâmbios e mutações, que desestabilizam o binarismo dessa oposição, mostrando possibilidades transgressoras e transitórias.

Trans. Eis o prefixo-chave, já transformado em conceito. Remete ao universo da diversidade sexual, nas figuras de travestis e transexuais, não como novas categorias estanques, mas, justamente, como a liberdade de transcender categorizações, transitar “entre”, “além” dos polos dos binômios. Nesse sentido, além de um movimento no campo dos direitos humanos fundamental em nossos tempos, o “trans” transpõe qualquer gueto para afirmar a liberdade do ser, a possibilidade de desvencilhar-se dos restritos padrões normativos da constituição da identidade. Assim, liberta cada indivíduo de experimentar sexo e gênero como aprisionamento.

Em Belo Horizonte, “Esse Corpo Meu?” encontra um espelho: o espetáculo “Trans”, do coletivo This is noT, realizada pelos performers Guilherme Morais e Ana Luísa Santos. As coincidências são várias, desde o diálogo com a argentina, a partir das pesquisas sobre identidade de gênero da ONG Futuro Transgenérico e da artista trans Susy Shock, até questões formais mais específicas, como as imagens do duplo, configurada pelos atuantes, e a simultânea frente de batalha nos campos da linguagem, da imagem e do corpo.

Ao traçar outras conexões entre o espetáculo da Téspis se a cena teatral brasileira mais contemporânea, percebe-se a força estética e ética de um conjunto de trabalhos. Ainda na capital mineira, uma das criações mais desafiadoras do ano passado foi a cena “Não conte comigo para proliferar mentiras”, dirigida por Alexandre de Sena, somando perspectivas críticas de cor, classe e gênero; e “Rosa Choque”, sob a direção de Cida Falabella, e “Calor na Bacurinha”, quando dirigida por Marina Viana, embora não abracem frontalmente a questão trans, desconstroem estereótipos da performance de gênero e do ser mulher. Já em Curitiba, há os trabalhos da Selvática Ações Artísticas, dentre os quais “As Tetas de Tirésias”, mito transgênero primordial, lembrado também no espetáculo de Itajaí.
O que faz desses trabalhos tão desafiantes para o espectador – falando especificamente de “Esse Corpo Meu?” também –, é a construção dramatúrgica, energética e espetacular não de uma alegação, certeza ou defesa de ponto, cristalizadores das ideias e das ações, mas de um questionamento. Uma crise. Uma indagação. Para isso, é determinante a não coincidência entre a cena visual e a cena sonora – entre os movimentos dos corpos presentes e as vozes desencarnadas em off. O tratamento poético dado às palavras mas também sua forma de emissão, em eco, entre ruídos sonoros que remetem ao futurismo oitentista de ciborgues transumanos. O caráter simbólico dos movimentos dos atuantes, construídos numa operação de estilização que transforma os gestos mais cotidianos, clichês de gênero, em estranhamentos.

A expressividade corporal de Max e Denise delineia-se plástica e discursivamente como produtora de imagens impregnadas de simbolismo. Vestir uma roupa corresponde a vestir um papel social, ou igualmente desvesti-los, e o preparo corporal de ambos permite o livre trânsito pela gramática do feminino e do masculino. Quando finalmente as gestualidades se confundem, inclassificáveis, os braços enfim se soltam, livres dos gestos pré-programados da moça e do macho, e dançam explorando o espaço.

A cena da construção da mulher perfeita é exemplar: impressiona o quanto se reconhece do ideal feminino socialmente aceitável no frankstein-mudo. Este e outros momentos ainda fazem pensar sobre a complexa relação entre a construção do feminino pelo corpo-mulher e pelo corpo-homem. A diva loira como algo do qual a mulher precisa se libertar, mas que o corpo-homem, se não cisgênero nem heteronormativo, almeja como libertação.

Corpos e sons geram uma atmosfera sinestésica, uma sensibilidade particular, de uma delicadeza estranha, leve acidez afetiva a corroer pouco a pouco as certezas do espectador. O que se faz no palco, segundo o próprio texto, é a paródia da paródia da paródia. O humano que imita o humano que imita o humano que imita. As figuras em cena insistem em risos satíricos – riem de si ou de nós? Recobrem com uma camada de cinismo tudo o que mostram.
Na apresentação realizada no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a presença de uma turma de estudantes na plateia extravasou o difícil convívio desse tipo de proposição cênica com um público indisposto ao confronto estético, manifesto no fiufiu sexista, na surdez e na cegueira eletivas para o que não se quer enfrentar – atitudes comuns a outros estratos da sociedade menos dispostos a se autodenunciarem em gritos adolescentes.

Diante de cenas sugestivas como a bolinha que repetidamente rola do homem em direção ao meio das pernas da mulher e o brincar de carrinho e de boneca, entrevê-se a puerilidade da heteronormatividade castradora. Mas “Esse Corpo Meu?” não trata o espectador como criança. O cinismo é um modo de olhar para esse indivíduo infantilizado socialmente pela simplificação normativa, padronizada e binária do mundo como o adulto que ele é.

O espectador olha para a cena ou a cena olha para o espectador?

Foto SECOM Itajaí

Sampleando desejos
por Valmir Santos 
A neutralização do corpo é uma das constantes no teatro pós-dramático. Ele não modula esforço por linhas de emoção ou de identificação. Os atores Denise da Luz e Max Reinert seguem essa percepção à risca em Esse Corpo Meu? (2014), da Téspis Cia. de Teatro, de Itajaí. Adicionam fortes ingredientes da ação performativa para desconstruir a ilusão cênica e criticar a fixação biológica de gênero, como se as genitálias presumissem o desejo.
Seus corpos-manequins são suportes para samplear o gesto, a vestimenta, a atitude, o estereótipo. Desfilam no palco desvios e deslizamentos do masculino e do feminino com variantes para as transgeneridades.

Na criação colaborativa com a argentina Periplo Compañía Teatral – a direção é de Diego Cazabat –, a partitura física estiliza a glamorização da vida e provoca estranhamentos nos papeis sociais do homem e da mulher, ruídos representacionais a ver com a pele que cada um habita.
O texto-pensamento flutua em voz off sobre a dança dos corpos de Reinert e Denise, que transitam diálogos não-verbais e olhares que dizem muito. A fala gravada funde-se à paisagem sonora desenhada por Hedra Rockenbach, instigando uma dramaturgia que abre paralelos ou surte efeito direto.
A dupla atira-se de peito aberto. Seus corpos-narradores frequentemente vêm do fundo para a boca de cena. A frontalidade desenha como que um corredor-passarela em direção ao público. Também ao fundo, dois painéis lado a lado, de pé-direito alto, são os respectivos guarda-roupas. Atrás de cada um deles Denise e Reinert providenciam as mutações.
A pesquisa da coprodução encontrou níveis sofisticados de associação trabalhando com um material difícil de ser processado. Samplear significa montar. Não bastasse o campo de suas culturas em cruze, as duas companhias se permitiram contextualizações e relativizações históricas, econômicas e antropológicas sutilmente sinalizadas em objetos, adereços e figurinos, ou assumidamente viscerais nos corpos convulsos ou estatelados.

Afinal, estamos diante de diferentes níveis de violência na sociedade, como aquela exercida particularmente sobre o corpo da mulher, do cala boca machista ao fetichismo publicitário e cosmético.

As miniaturas de um carro e de uma boneca mimetizam infâncias emolduradas pelo tempo. Em alguma medida elas eram descondicionadas pela ternura acenada no desfecho. São imagens políticas que ampliam horizontes e refutam as agendas conservadoras sobre as normatizações da sexualidade, desculpa para o preconceito.

Entre chegar a esse raciocínio e transpô-lo à cena a Téspis e a Periplo, companheiras de intercâmbio desde 2007, conseguiram friccionar heterogeneidades também artísticas. A terceira via é o que Esse Corpo Meu? mostra equilibrando-se sobre o fio da navalha. Risco superado até durante a apresentação para uma plateia lotada, sobretudo, por estudantes do ensino médio. Apesar de um ou outro espectador incauto, o público em geral fruiu uma obra artística inquietante, além do que é um alento notar a floração adolescente tolerando as diferenças.

domingo, 9 de agosto de 2015

Esse Corpo Meu? em duas cidades nesta semana!

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O espetáculo "Esse Corpo Meu?" estará participando de dois grandes eventos nessa semana:

Em Itajaí, o trabalho da Téspis Cia. de Teatro participa da mostra local do IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha. O evento, produzido pela Prefeitura Municipal, através da Fundação Cultural, é uma grande luta dos artistas da cidade para que siga sendo realizado para toda a comunidade do município. Bienalmente, realiza-se esta mostra dos trabalhos mais representativos do atual cenário das artes cênicas brasileiras, contando também com a participação de artistas locais na grade de programação.

Clique neste link e confirme sua participação!

Em Blumenau, a Cia. participa da comemoração dos 20 anos de trajetória da Cia. Carona de Teatro. A programação é toda gratuita e consiste em apresentações de espetáculos convidados, exposição, sarau da Temporada Blumenauense de Teatro, duas mesas redondas, três vivências teatrais, enfim, uma grande descarga de energia teatral em vários espaços culturais da cidade, como: Teatro Carlos Gomes (auditórios e praça), Fundação Cultural de Blumenau, FURB, Espaço Plural, Espaço Old Friends Art Studio e Casa da Trupe Perambula.

Clique neste link e confirme sua participação!


Sobre o espetáculo

Embora tenha se adaptado a inúmeras intempéries, moldando-se ao estilo de vida contemporâneo à sua época e, dessa forma, ser a espécie mais bem sucedida em nosso planeta, a humanidade ainda possui, enraizados em sua pele, tabus e preconceitos quase primitivos. Olhando com um pouco mais de atenção ao nosso redor talvez estejamos vivendo hoje em dia um período de transição onde algumas questões são postas à prova quando pensamos nos enquadramentos sócio-culturais que a TV, a moda e os ditos “padrões de comportamento” nos impõem.

O que é feminino? O que masculino? O que é um corpo bonito? O que é ser normal? Esse corpo meu? O espetáculo discute os padrões sociais em que tentamos nos enquadrar todos os dias, para sermos aceitos, para sermos felizes. Dentro de uma linguagem performática, onde várias cenas são apresentadas sob forte impacto musical para formar um conjunto, a peça que investe no trabalho corporal dos atores e tem textos apenas em off, desfila, de uma maneira bem humorada, um panorama de conflitos sobre padrões de gênero, de beleza, de moda e do que sobra afinal, de original, em cada um de nós.