A Téspis Cia. de Teatro mantém um Grupo de Estudos Teatrais, formado por aproximadamente 20 alunos e fazedores de teatro da cidade de Itajaí, trabalhando em uma formação continuada. Uma das atividades realizadas no grupo é a elaboração teórica.
Como exercício, foi solicitado aos participantes a escrita de uma resenha crítica a partir do espetáculo Esse Corpo Meu? da Téspis Cia. de Teatro que estreou no dia 15 de março de 2014, no Teatro Municipal de Itajaí. Abaixo divulgamos alguns textos que foram elaborados:
Bonecos de carne experimentam o masculino e o feminino
por André Luiz Thieme*
|
Foto: Emanuelle Mattiello |
O espetáculo “Esse Corpo Meu?” da Téspis Cia. de Teatro, aborda uma temática apropriadamente atual em que se discute e se aprecia tanto o corpo humano. Vivemos uma época em que o corpo humano está maximizado, os conceitos de beleza estão exacerbados, buscando-se no próprio corpo os ajustes não naturais. TRANSformamos o corpo em esculturas gregas, que exacerbam as características mais apreciadas de forma a tirar o corpo do seu equilíbrio. Arrancando partes que não são desejadas e aumentamos as partes que são. E assim o corpo se torna masculino, feminino, TRANScende as barreiras do que é feminino e masculino, TRANSporta vontades, anseios, TRANSborda.
Falar do corpo, é falar de nós mesmos, é lembrar que somos carne e que desta carne surgem os anseios, irritações, inadequações, desespero. O desespero de nos encontrarmos, de sabermos quem somos e como somos, e ao encontrar ou descobrir, poder expressar isso nos nossos corpos. Quando expressamos em nossos corpos, o outro vê e então vem o julgamento, logo passo a expressar em meu corpo apenas aquilo que o outro aprova, ou drasticamente aquilo que ninguém aprova.
O trabalho desenvolvido pelos atores Denise da Luz e Max Reinert nos suscita muita discussão sobre o que é corpo, como o habitamos, e o que está atrelado a ele. Os artistas em cena desenvolvem um jogo com ações claras e com o público, convidando-nos a discutir o tema. O cenário e figurinos criam uma atmosfera de curiosidade, de busca de algo, de necessidade de encontrar algo. A meu ver, a iluminação contribuiu para manter este efeito e colocar o foco no que estava sendo proposto.
A sonoplastia foi o único elemento que trouxe palavras, ou aquilo que geralmente consideramos o texto, no momento da peça senti como complementares, mas hoje me pergunto se eles não direcionam a interpretação do espectador. No entanto, o texto apresentado da forma em que surgiu, contribuiu para o arco dramático da peça, que no meu entendimento, atinge o ápice no show de máscaras, que constitui um diálogo sincero e cômico com a plateia.
Todas as imagens criadas no espetáculo colocam o expectador no desconforto, como sugere os dois personagens iniciais, que a mim remetem a bonecos que tentam entender o que cabe a eles, e exploram possibilidades. As ações desempenhadas pelos atores eram concretamente simbólicas, ou seja, estavam totalmente em relação com a cena, mas remetiam a um significado maior que possibilita a discussão do tema de gênero. Todo o jogo proposto um com o outro e deles com a plateia, levam a um final gentil e reconfortador.
* André Luiz Thieme, 27 anos, é Mestre em Psicologia e professor na Unifebe e Faculdade Avantis.
Esse corpo meu?
por Mayara Cristina da Conceição*
|
Foto: Emanuelle Mattiello |
Um espetáculo que utiliza como tema a Transexualidade e questiona seus espectadores a todo o momento sobre os padrões criados socialmente de identidade e gênero.
O que é identidade? O que é gênero? O que é ser normal ou anormal? O que “SOU” e o que “DEVO SER”? O que é “TRANS”? O que é “SER” trans? Onde está a inadequação do que vejo, do que quero ser e do que eu sou? Está bom? Agora está bom pra vocês?
Não tínhamos como sair do teatro, sem essa mobilização interna do questionamento, que surgia a cada ação e em cada cena ininterruptamente. Um espetáculo que sem perceber, nos movia em direção à ação, e nos desorientava em pensamento.
Um tema criativo e inovador. Não que a sexualidade seja algo abordado apenas nos dias de hoje- pois há tragédias gregas que já utilizavam como tema principal a homossexualidade-, mas o tema não se limitava nisso, e nem tão pouco, tinha seus limites previstos.
A peça era realizada por dois atores que necessitavam apenas de seus corpos para se expressarem, sem falas. No decorrer da peça surgiam palavras no áudio, que iniciavam com “TRANS” (transformar, transpirar...). As ações eram específicas e ajudavam a entender o contexto que estava sendo trabalhado, mas a cada palavra dita inúmeras vezes (trans, trans, trans), era como se algo me dissesse: “não é só isso, abre o teu vocabulário, abre a tua visão do que é o TRANS, abre a tua concepção de mundo e sociedade”.
Enquanto assistia, meu pensamento fluía. Não pude deixar de pensar enquanto sujeito de uma sociedade alienada. Uma sociedade em que todos buscam ações em comuns, objetivos em comum, e socialmente serem iguais e alinhados buscando serem comuns uns aos outros, evidenciamos uma comunidade que busca um padrão de normalidade e de anormalidade para julgar e condenar a seu modo de pensar e agir em massa. A pessoa que foge do padrão, ou não visualiza o “SER COMUM” que todos veem e buscam, são condenados a estarem em cima do muro, ou a serem a favor da radicalização e da normalização dos diferentes. Utilizam de um pré-conceito extraído de massas, por gerações e gerações, não buscando pensamentos individuais e reflexões próprias. Quando colocamos todas as nossas crenças em “prova real”, nos colocamos como sujeitos independentes, donos de nossos pensamentos e ações em questionamento. Acredito ser mais interessante e provocativa esta alternativa, intelectualmente, pois somos seres pensantes. Ou não?!
Porém, voltando ao prumo da peça, e ao seu conteúdo, critico provocante e inovador. Os jogos criados no espetáculo, as estereotipias presente nos corpos e risadas dos atores modelados em cena quase como bonecos, puxados por fios, a troca constante de papéis, ações e risadas, e a inquietação transferida ao público a cada ação, abriram o campo da reflexão.
Pude perceber alguns princípios dos quais trabalhamos em sala de aula, na prática: brincar com o peso, andar pelo quadril, o exercício de movimentar uma articulação por vez, e todas de uma só vez, entre outros.
Na última cena, quase como uma dança, víamos duas pessoas trocando de papéis em volta de uma cadeira, uma música suave trazia leveza aos corpos dos atores e para aquele momento de êxtase, ou metamorfose. Absolutamente, é apresentado o momento mais emocionante e confuso do espetáculo - pois nem no final pude relaxar com respostas prontas.
Afinal, eram dois atores na troca de papéis? Duas pessoas em transição? Ou apenas um corpo com dois pensamentos distintos em cena?
* Mayara Cristina da Conceição, 22 anos, é estudante de Fonoaudiologia e participante do projeto Terapeutas da Alegria.
Esse corpo meu?
por Guilherme Raphael Caldeira*
|
Foto: Lote84 |
O espetáculo questiona os padrões sociais, e que cria diversas imagens na mente do espectador. Podemos notar na linguagem utilizada, que não usa de nenhuma palavra propriamente dita, que sua metodologia está nos símbolos apresentados e nas várias maneiras que podem ser interpretados, isso sem fugir do foco, que mesmo não sendo único, faz jus ao título da peça.
Os dois corpos a princípio em cena aparentam não querer demonstrar que são “homem” e “mulher”, mas sim, apenas corpos. As risadas e expressões que ambos dão ao se olharem lembram de certa forma a reação ao se ver algo “novo”. O que ajuda na construção do pensamento do que é o corpo em si.
É notável como as formas simples podem levantar questões e criar formas para o espectador, como “Por que não posso ouvi-los dizer o texto?” ao “Por que eles trocaram de lugar?”. Ao fazer os personagens trocarem de roupas vemos o quanto a maneira de se vestir influencia na nossa mente, visto que sabemos que são as mesmas pessoas, mas ao mesmo tempo, são pessoas diferentes ao usar roupas diferentes.
A habilidade dos atores tem muita influência, visto que o espetáculo exige um trabalho corporal que seja limpo, com ações simples e precisas, e que lapidam as cenas com a entonação e contrastes necessários, sem “fingir” ser ou “tentar parecer algo”, situações essas que Denise e Max fazem parecer fácil, enquanto mudam suas intenções para agir de uma forma mais “masculina” por assim dizer, ou mais “feminina” por assim dizer. As ações em cena também contam, mesmo a de se sentar de uma maneira e mimicar os movimentos do outro é um jogo performático que faz com que mais questionamentos surjam. E jogar a pergunta “Esse corpo meu?” para a plateia faz com que os mesmos acabem se perguntando isso.
E o melhor disso é você não receber uma resposta pronta para a tal pergunta, mas sim você usar de suas experiências e conhecimentos para tentar responde-la.
Podemos ver que o espetáculo é praticamente todo marcado com a música, o que além de ser sutil serve muito bem o propósito tanto de camuflar as trocas de figurino quanto a de dar ritmo às cenas . Músicas que mesmo tocando em loop, remixadas em um ótimo trabalho da Hedra Rockenbach, se encaixam no contexto das cenas ditando um compasso diferente para cada uma delas.
A peça aborda também a questão do ser humano que tenta ser o que não é, que se espelha na imagem do outro, muitas vezes não se dando conta enquanto se transforma completamente, e que em nada lembra o que era antes. Mesmo essas mudanças não sendo sempre algo ruim. O que leva a discussões sobre os padrões de beleza estabelecidos pela sociedade, que influenciam nas decisões tomadas por alguns indivíduos, e que consequentemente afetam outros a sua volta.
Há também um questionamento sobre as máscaras que utilizamos, sendo apresentadas no espetáculo por figuras da música popular, são exemplos de como as pessoas mudam quando estão se escondendo atrás de algo, ou alguém, exemplificado pela maneira que os personagens agiam usando as máscaras e depois sem as mesmas. Podendo ser levada em consideração a questão sobre as máscaras sociais que usamos em cada ambiente e da maneira que elas influenciam no nosso comportamento.
Uma grande sacada foi quando por último observamos as máscaras dos atores Denise e Max, te fazendo pensar que talvez você próprio seja uma máscara, ou um reflexo de algo para alguém. E que talvez mesmo sem querer, você pode acabar se tornando essa imagem.
Outro ponto que me lembrei após o debate sobre a peça foi o crescendo que existia durante as cenas em que os atores estavam “sem roupa”, que começou com ações sutis, mas que ao decorrer do espetáculo foram se intensificando, criando um contraste significante em relação às cenas.
Na última cena, vemos os personagens brincando com brinquedos característicos, que te fazem refletir sobre como na nossa infância somos guiados através de um caminho já estabelecido, não tendo a oportunidade de poder escolher qual queríamos seguir. Muito da nossa sexualidade é definido na nossa quando somos crianças, e a cena final demonstra muito disso. Ao final, com a troca de lugares entre os dois personagens, com cada um deles mimicando e repetindo as mesmas ações que o outro fica a pergunta do “Qual é a diferença?”.
* Guilherme Raphael Caldeira, 19 anos, é aprendiz de RH na Brasil Foods.
Esse corpo meu?
por Gabriel Felipe Spronello*
|
Foto: Lote84 |
Esse corpo meu? Eu sou o ser que está no reflexo do espelho ou sou um ser diferente? Quem sou eu? Eu sou humano... porém sou algo além disto? Sou um homem, uma mulher, um animal, um macaco (sem pelo), um ser que pensa e se modifica enquanto tenta experimentar coisas que mal sabe o resultado, sou um ser pensante... mas quem sou eu? Ou melhor, sou exatamente o que?
Questionamentos e suscitações que aparecem depois de assistir a estreia da peça “esse corpo meu”. O tema é abrangente, apesar de brincadeiras sonoras ao fundo (já que não existem falas, somente sons em off) ditam palavras que iniciam com “trans”. Transpirar, transcender, trans, trans, trans (relevando o assunto dito como principal na peça, a transexualidade). A peça é muito além do até então tema único da transexualidade, ela é em última instância, assim como toda obra artística, uma obra sobre o ser humano. Nós os seres humanos quando nos conectamos com funções artística (e culturais) sempre relevamos o nosso próprio estado. Sempre falamos sobre nós mesmo. A arte é de alguma maneira em última instância sobre o ser humano. Partindo desse pressuposto, a peça em questão “esse corpo meu?” questiona o ser humano e as motivações de ser. Somo aquilo que vimos. A propaganda é realmente algo que guia nossas escolhas?
Dois personagens que interagem entre si são as personagens da peça. Não tem nome e não falam. Não buscam se aproximar do espectador, só buscam demonstrar e jogar ao ar assuntos e questionamentos. De uma maneira ou de outra acabam contando uma estória sem narrativa linear distribuídas em cenas.
Usam uma roupa cor de pele, que aparenta ser a roupa sem “discriminação de gênero”, a roupa onde o ser humano se desprende de todas as suas travas cerebrais/sociais e voa sem limites, porém, como nada é um mar de rosas, em alguns momentos o ser que não se distingue por gêneros vive tentando se enquadrar.
Ciclos de cenas se repetem. Uma bolinha jogada no meio da perna do outro “ser” desenvolve o início de outra cena; O fato de uma mulher e de um homem reproduzirem os seres sem gênero só atiça mais as questões que a peça propõe; Com o desenvolvimento da peça, os personagens vão tentando se enquadrar em padrões de convívio e de aparência. Trocam de roupa com frequência, questionam sempre se “está bom?” a plateia;
Como a peça não é dividida em “atos” diferentes os atores ficam sem parar, todo o período da peça em movimento. Trocam de roupa em cena (e nesse momento, sempre que algum dos dois atores começa a trocar de roupa, o outro distraí a plateia com movimentos até então sem sentindo se não o de distrair a plateia no hiato que é o período de troca de roupa). A troca de roupa inclusive acontece rapidamente (e é necessário muita destreza para isto..) em cena atrás de dois pilares negros.
Os atores usam de movimentos característicos e ações para desenvolver a cena. É com frequência lindo assistir a forma com que os membros se movem, como a respiração é controlada, como as pernas se movimentam, todo o controle corporal e muscular. Como a grande maioria de ações se complementam e montam a narrativa desconexa dando a ela um sentido (única de pessoa para pessoa).
É um teatro no mínimo diferente, e não acredito que classificar obrar artística ajude-as, porém, aparenta (e é) um teatro contemporâneo ótimo. Não pretende ser pois é.
A direção (apesar de eu não ter conhecimento dos processos efetuados para chegar onde chegou) é concisa e forte. A imagem transmitida é clara, não existem ações que não se entendem, a iluminação é variada e de certa maneira complementa grande parte das cenas de maneira mágica, em momentos é difícil não se sentir absorvido pela risada histérica da personagem que tenta se enquadrar ao convívio e negar o seu “eu”.
A música, por fim, é outro grande aspecto positivo que aparece em cenas onde as vozes que narram frases desconexas e muitas vezes com sentido unicamente complementar as ações, aparece. Músicas pop e contagiantes foram dispostas de maneira como se uma peça caísse no quebra cabeça (a última peça que faltava) e completasse todo um ciclo de construção.
Finalmente, não consigo achar pontos negativos (apesar de ter certeza que estes existem, pois, nada é perfeito e não é possível se enganar quanto a isto, sempre existe algo que possa ser melhor e a perfeição de verdade não existe em nenhum sentido), todas as ações aparecem complementando-se. Todas as cenas são também complementares e suscitam ideias interessantes. Talvez algo pudesse ser feito diferente, talvez uma música pudesse ser trocada, uma iluminação enfraquecida, uma ação reduzida, mas, qualquer modificação acabaria por desestruturar a grande e complexa montagem que ficou, em minha humilde opinião, extraordinária.
* Gabriel Felipe Spronello, 20 anos, é estudante de Direito e Auxiliar de Departamento Pessoal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário