O grupo Porto Cênico (de Itajaí) lançou recentemente uma revista de teatro dedicada a discutir variados aspectos das artes cênicas contemporâneos. Em sua terceira edição, o tema escolhido é a Dramaturgia. Dentre os inúmeros textos, um deles faz um panorama sobre a dramaturgia catarinense contemporânea.
A Téspis Cia. de Teatro aparece nesse panorama representada por seu diretor artístico, Max Reinert, que tem sua obra analisada por Afonso Nilson Souza e Stephan Baumgartel, junto a vário autores catarinenses que estão desenvolvendo seus trabalhos tão criativamente.
Abaixo reproduzimos o texto para que vocês conheçam um pouco do trabalho dramatúrgico que está sendo produzido no teatro de Santa Catarina. Quem tiver interesse de conhecer toda a revista, pode clicar neste link aqui!
Boa leitura!!!!
Max Reinert em cena de Pequeno Inventário de Impropriedades - Foto de Núbia Abe |
Breve Panorama da Dramaturgia Catarinense Contemporâneapor Afonso Nilson Souza e Stephan Baumgartel
A dramaturgia em Santa Catarina tem tido, ao longo dos últimos anos, um crescente número de novos autores e textos inéditos encenados e publicados. Essa efervescência não apenas representa o aumento de grupos profissionais em atuação no estado, mas a demanda crescente que o país tem por profissionais de texto criativo, seja dramático, literário ou cinematográfico. Nesse contexto, traçamos um rápido panorama desse movimento, citando, brevemente, obras e autores que constituem um movimento de ampliação e diversificação do número e da qualidade da dramaturgia catarinense recente.
Gregory Haertel, em parceria com a Cia Carona de Teatro, de Blumenau, é o dramaturgo com maior número de textos encenados em Santa Catarina nos últimos anos. São de sua autoria: A parte doente, Volúpia, Passarópolis, Sujos, Das águas, entre outros com considerável penetração nos circuitos de festivais e mostras de teatro nacionais. Convém também destacar que o processo colaborativo de construção dos textos é uma constante no trabalho do autor em parceira com a Cia Carona, sendo um dos únicos autores que trabalha continua e sistematicamente com esse procedimento no estado.
Max Reinert, a partir de sua formação no Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, sob orientação de Roberto Alvim, vem desenvolvendo uma série de experiências dramatúrgicas utilizando a fragmentação da narrativa, ambivalência temporal e outros recursos contemporâneos de composição textual. Seu texto Meteoros, por exemplo, lida com uma espécie de incompletude dialógica entre os personagens, aproximando-se pela estrutura ao clássico Na Solidão dos Campos de Algodão, de Bernard Marie Koltès. Já, em Pequeno Inventário de Impropriedades, o dramaturgo utiliza não apenas uma narrativa aos saltos, fragmentada, mas também quebra da diegese em direção a universos surreais e esquizofrênicos.
O texto Maria, a Louca, de Antônio Cunha, após encenação em São Paulo com direção do pesquisador e diretor Jairo Maciel, teve uma montagem portuguesa com direção de Maria do Céu Guerra, também apresentada em Florianópolis em 2011. O autor, um dos mais atuantes do estado, estreou em 2014 seu mais novo texto, o monólogo Eu Confesso, sob sua direção e atuação do veterano Édio Nunes.
Alguns textos nem tão recentes receberam novas montagens, como, por exemplo, Urano Quer Mudar, de Rogério Christofoletti. A montagem dirigida por Brígida Miranda, com atuação de Ronaldo Faleiro e Margarida Baird, oxigenou o texto que além de sua estreia no Festival Internacional de Teatro de Blumenau, em 2005, não havia tido novas montagens. Os textos Mulheres Nuas e Quatro, de Marlio Silveira da Silva, receberam novas montagens pelo Grupo Círculo de Teatro em 2011 e 2012, com direção de Christiano Scheiner, que, além das atividades como produtor e diretor, mantém ativa sua produção dramatúrgica, tendo encenado recentemente os textos Pequeno Monólogo de Julieta e O Açougueiro, além de ter publicado textos teatrais em periódicos.
Novos nomes também começam a despontar no cenário. André Felipe, de Florianópolis, recebeu duas vezes o Prêmio Rogério Sganzerla, da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, pelos textos Suéter Laranja em Dia de Luto e Não Sempre. De Jaraguá do Sul, Paulo Zwolinski teve a peça Como Se Eu Fosse O Mundo encenada no Festival de Curitiba em 2010, com direção de Roberto Alvim; a peça Os Pássaros foi encenada em 2013 pelo Edital Novelas Curitibanas, com direção de Don Correa. Em 2014, também com direção de Don Correa, o texto Gafonhoto estreou no Festival de Curitiba. Também oriundo do Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, Zwolinki teve o texto Como se eu fosse o mundo publicado pelo selo do projeto em 2010. Nascido em Lages, mas radicado agora em Curitiba, temos o autor Andrew Knoll, cujos textos Fatia de Guerra e Devastidão, foram publicados pelo referido Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, recebendo também o primeiro uma montagem de Roberto Alvim em seu teatro Club Noir em São Paulo.
A publicação de textos de teatro em livros permanece bastante rara, mas com algumas honrosas exceções. Max Reinert lançou, em 2013, o livro Primeiras Obras, pelo selo Questão de Crítica. Paulo Zwolinski lançou pelo selo do Núcleo de Dramaturgia do Paraná o livro Como Se Eu Fosse O Mundo. Almilcar Neves, que já havia publicado o polêmico No Tempo de Eduardo Dias em 2005, não tão recentemente publicou Se te Castigo é Porque te Amo, em 2010, pela Letras Contemporâneas. Em 2014, o Erro Grupo lançou Poética do Erro: Dramaturgias, uma coletânea com nove textos de autoria de Pedro Benaton e Luana Raiter.
Cabe mencionar uma autora catarinense veterana que, recentemente, viu dois de seus textos teatrais publicados pela editora Giostro em uma obra intitulada Otto. Edla van Steen, nascida em 1936 em Florianópolis, pode ser mais reconhecida como autora de contos e romances, mas seus textos teatrais sempre visaram um acabamento formal cuidadoso dentro de sua proposta realista. Um cuidado que lhe rendeu, em 1989, os prêmios Moliére e Mambembe pelo texto O último encontro, bem como o Troféu APCA de Revelação de autor, algo inusitado para uma escritora de então 53 anos.
Outro dramaturgo premiado nacionalmente é Carlos Eduardo Silva, que, em 2000, ganhou o prêmio de dramaturgia do MINC com sua comédia de costumes A Filha da..., e, em 2004, o prêmio da Funarte com sua comédia Hemp. Desde então,Carlos escreveu outros textos teatrais, mas nenhum deles ganhou uma montagem de destaque, o que aponta para um desafio estrutural ainda não solucionado pelos dramaturgos e pelos órgãos de fomento teatral do Estado de como concretizar uma produção dramatúrgica contínua e de qualidade.
Se comparamos os textos dos autores aqui citados (aos quais poderíamos juntar também os dramaturgos e os diretores Sulanger Bavaresco, Afonso Nilson, Daiane Dordete Steckert bem como resultados dos processos coletivos do Dionisos Teatro), podemos constatar que a maioria apresenta um diálogo bastante solidário com os preceitos dramáticos de um realismo ilusionista que nos apresenta uma situação ficcional reconhecível em sua verossimilhança empírica e que desemboca em diálogos intersubjetivos que façam a ação ficcional desenvolver- -se por meio de um conflito a ser resolvido. Exceções são principalmente os textos criados pelos novos autores influenciados pelas propostas do diretor Roberto Alvim no Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná, mas também os trabalhos monológicos de Daiane Steckert. Nesses textos, o foco desloca-se de um conflito intersubjetivo para um conflito interno das figuras, muitas vezes figuras que aglutinam diversas vozes dissonantes em um único discurso. Mais do que isso, são textos que nos apresentam um enfoque composicional em uma meta-textualidade pelo qual o conflito não se situa apenas no nível ficcional, mas, sobretudo, em relação ao material apresentado: sua instância autoral problematiza sua relação (seu domínio e objetividade); sua apresentação fragmentada (que não raramente nos apresenta tempos e lugares distintos como se fossem simultâneos) desafia as capacidades de compreensão e interpretação do leitor.
Desse modo, encontramos como voz autoral presente no texto não apenas aquela já conhecida de um narrador explícito, que pode ser incorporada e até escondida em um conjunto dramático, mas também uma voz mais sub-reptícia que se apresenta nas frestas da composição e precisa ser detectada pelo leitor. Ela configura o conflito não mais num eixo narrativo, como conflito intersubjetivo entre personagens ficcionais, mas como conflito articulado tematicamente na composição do trabalho, como, por exemplo, nos textos de Max Reinert, Paulo Zwolinski e Andrew Knoll.
Encontramos, aqui, uma membrana linguística entre a percepção humana e o mundo percebido que evidencia o tecido da linguagem como um filtro que tinge nossa consciência daquilo que chamamos de “mundo”. Ao evidenciar criticamente esse filtro, tais textos participam em uma crítica da percepção humana bem como da construção dramática como imitativa de uma realidade supostamente objetiva. Na medida em que a dramaturgia catarinense afasta-se de uma apresentação dramática ingênua e incorpora procedimentos críticos ao drama, ela consegue participar desse propósito contemporâneo de apresentar uma imagem textual do mundo ao mesmo tempo em que esse texto apresenta uma (auto)crítica de seus procedimentos de criar essa imagem. Desse modo, a dramaturgia catarinense contemporânea – que difere daquela que apenas está sendo escrita hoje em dia –, apresenta aos seus leitores e espectadores um projeto literário no qual se indaga não só as características, contradições, medos e esperanças de uma vida humana no mundo atual, mas, sobretudo, a capacidade performativa da linguagem de criar essa vida e esse mundo para nós seres humanos. Com esse foco, ela desafia também os diretores e seus modos de encenação para que eles encontrem novas poéticas cênicas para esse tipo de textualidade teatral.
O grande desafio poético (e social, na medida em que a forma de uma obra é seu conteúdo social) será provavelmente mediar essa metatextualidade com o horizonte de expectativa do público catarinense impregnado em grande parte pelos preceitos do realismo. Ao conseguir essa mediação, tais textos estabeleceriam um contexto realista que insiste na realidade empírica como uma realidade compartilhada por todos, mas abririam frestas nessa imagem realista pela qual um senso de possibilidades outras pode se manifestar na imaginação coletiva dos leitores e dos espectadores. Tomara que a renovação formal da dramaturgia catarinense e seu crescimento quantitativo ganhem o apoio das diversas instituições de fomento (municipais, estaduais e público-privadas) para que ela possa consolidar-se e exercer essa força formadora cultural no Estado.
Afonso Nilson Souza: é dramaturgo, produtor cultural, mestre em teatro e analista de programação social do SESC Santa Catarina (Florianópolis). Stephan Baugartel: É doutor em teatro, professor na UDESC (Florianópolis), desenvolve pesquisas na área de dramaturgia
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